01/01/2008

Pé Quebrado


O princípio foi pura felicidade, não que isso exista, mas pura felicidade em comparação com o antes e o depois. De qualquer forma, dias muito bons, mas muito bons mesmo. Trabalhávamos, mas almoçávamos em casa. Na verdade, não trabalhávamos tanto. Tínhamos muitas horas de ócio, amor, irresponsabilidade e contemplação. Às vezes, até dormíamos depois do almoço. Tínhamos pouco passado e o lugar era iluminado, arejado e com uma vista linda. Éramos novos um para o outro e ambos para a vida. Tudo estava por fazer e fomos devagar, curtindo, aproveitando. Amávamos como se não houvesse o dia de amanhã.
Mas havia.
Papel, algodão, couro, flores, madeira, ferro e cobre...
Depois – o depois, o depois... – vieram as responsabilidades, quem lava, quem enxuga, quem arruma, quem contribui com quanto para as despesas. Mas mesmo essas eram novas e tínhamos um plano. Seriamos os primeiros, um dos primeiros a dividir tudo. E era ao mesmo tempo ilusão, como tantas são as ilusões, mas fez seu efeito: gerou liberdade, e com ela a solidão; gerou respeito, e com ele o silêncio, engendrando-nos pessoas.
Bronze, cerâmica, latão, aço, seda, renda e mármore...
Os dias do meio, nem começo e nem fim. Construíram-se diferenças e acordos, adaptações, concessões mútuas. Renúncias, compromissos, a insidiosa delimitação dos espaços.
Um rio principia pequeno, aumenta, briga com as margens para depois –depois, depois... – se espalhar, correr mais tranqüilo, mais confortável entre seus limites: assim passa o tempo. Houve calma e houve confusão, encontros e desencontros, entregas e silêncios. A sinceridade como virtude, a verdade como aflição. E o rio corre, sem perguntas e sem respostas, apenas corre.
Cristal, porcelana e prata...
O desenlace é somente um momento, o instante em que a água ferve. Mas já estava lá, na raiz, nos genes, na gênese. É como uma presença disfarçada de cotidiano, uma sombra aceita como conseqüência inevitável da luz. Incompreensível, final e indiscutível. Algo que se desfaz, esboroa, esgarça e pui.
E de volta ao antes, ao princípio, em forma de depois do depois.
Uma mesma matéria, poeira e estrelas.