Lembrar.
Sentado no ônibus de escola, oito ou nove no máximo, olhando para minhas mãos e me perguntando o que seria delas. Onde iriam, quem tocariam, quais gestos no futuro, que profissão, quais experiências. O que seria de mim.
Estas imagens e pensamentos ficaram comigo: o angulo da luz do sol, os sonhos, a cor dos bancos, a expectativa, a hora do dia.
Eu gostava de calças cinza e camisas brancas, eram como dias de sol e liberdade.
Eu adorava a garoa. As garoas calmas e majestosas e as garoas chatas e fininhas como agulhas. Lembro das pessoas dizendo que o clima era como o de Londres e isso soava como uma coisa muito importante.
Lembro de muitos rostos, os rostos das pessoas na rua no caminho do aeroporto. O aeroporto era muito longe e ir até lá era muito especial. Era um privilégio ser levado junto. Eu confiava neles, os rostos.
De uma certa forma confio neles até hoje.
Minha mãe ensinava como pintar em porcelana às tardes. Ela tinha uma quantidade interminável de amigas e, nossa, como elas se divertiam.
Meu irmão assobiava sempre a mesma música quando entrava em casa na hora do almoço. Uma época serviu o exército, e em uma outra ocasião sumiu durante um tempão. Viajando para o norte. Trouxe uma espingarda feita de peças de carros e tábuas de assoalho. Lá no norte eles fazem essas armas para matar passarinho, ele me disse. Sugestões de improviso e pobreza. Ainda está lá, velha e enferrujada, pendurada na minha parede.
Meu pai sempre demorava a chegar em casa à noite. Às vezes eu ficava esperando no portão. Podia trazer chocolates ou então um sorriso velho e amoroso quando me via.
E havia a Mercês, que tinha uma irmã gêmea que fazia palhaços de pano para vender na feira de domingo. Hoje é domingo, pede cachimbo... Tinha muita dificuldade em saber quem era quem, quando a irmã vinha de visita. Não gostava dessas visitas. Mercês era minha pagem. Minha pagem loira e linda e, nesse sentido, ela era única. Mas, é claro, que ter uma pagem linda e loira não queria dizer nada de especial para mim na época. As coisas eram como deveriam ser, um direito natural. Um dia ela foi embora. Eu estava muito crescido para ter uma pagem, me disseram. Hoje ela existe apenas na minha memória, nunca mais consegui encontrá-la.
Ainda hoje consigo ver os sorrisos ao redor da mesa da sala de jantar e ainda me lembro do aconchego, do aconchego...
As imagens voltaram pálidas e tingidas de um azul triste esta noite quando mais uma vez olhava maravilhado para minhas mãos. Não se existe sem passado.
E lembrar...