01/01/2008

The English Took the French Leave


The influence of the French and the English in Brazil began a long time ago and it is very present in our history.
The French were at one time the most serious threat to the Portuguese in Brazil. After being expelled in 1567 from Rio de Janeiro, they began paying attention to the North of the country. In 1612, a French expedition led by Ravardière began to colonize Maranhão. They were thrown out in 1615, it is true, but a man called Duguay-Trouin captured and sacked Rio de Janeiro in 1711.
France Said it owned Amapá until 1900. France has always been the model for the intellectual and cultural life in Brazil. French was the second language of the more educated and lively discussions took place in Brazil about the novels of Flaubert, Balzac and Zola. The elegant shops of the state capitals were full of French articles and women competed to see who wore the latest fashion dictated by Paris.
After them, the English culture began to exert a strong fascination over us, even though the English had had very arrogant manners: King James I, for example, generously gave the lands in the North of Brazil to noblemen in his court, but, fortunately or unfortunately, they did not colonize them. We could stretch things and say that Brazilian gold financed the commercial deficit between Portugal and England, and that they’ve had an important part in the political movements that resulted in the freeing of the slaves through the Lei Áurea.
But nowadays we can, in a stroll through the city streets and its memories, enjoy the rich inheritances left by these two cultures in our city.
In the old city center, close to Largo do Café, there are still many roofs and the beautiful dome, all made of stone, typical of the French architecture. We have Viaduto Santa Efigênia, a bridge inaugurated in 1913, that passed over the old Fruits and Vegetables Market; the Trianon Park on Avenida Paulista – originally Rua da Real Grandeza –,which was known by this name because of the copy of the French palace that was demolished to give place to MASP, and that the city officials insist in calling Park Tenente Siqueira Campos; the Campos Elísios and the Campo de Marte. Names and places inspired by France.
We can remember the railroad engineer Stevaux, who emigrated to Brazil and who left his mark here in São Paulo. There was the well known bookshop Livraria Gazeaux, a book importer, that used to be in the corner of Praça da Sé. There is also Capela de Santa Luzia, called the little French church, with the famous shrine of Our Lady Without Head on Rua Tabatinguera. And there was also the Liceu Franco-Brasileiro, later Lycée Pasteur, on Vila Clementino, where Monsieur Imbert taught for many years.
The English left us the railroad station Estação da Luz and the Light & Power building, which was built where the incredible building of Teatro São José used to be, on the corner of Rua Xavier de Toledo. The first Viaduto do Chá, that was built from 1886 to 1892 and demolished in 1938, was also inspired in English architecture. It had guards with booths on both ends, with register clocks that counted the people who passed by the turnstiles and paid three vinténs as toll. They have also left the Gasômetro and the many Workers Villages, like Vila Zelina, for example. This not mention the old São Paulo Railway. Between São Paulo and Santos, on the crest of the Serra do Mar, the railroad engineers built the town of Paranapiacaba, that can provide a marvelous day trip, especially on a Winter morning, very early, when a delicious fog covers the small town and one might expect to bump into Sherlock Holmes any second. We have until today St. Paul School, known in the past as Escola Britânica de São Paulo. We cannot forget our first department store, Mappin Stores, a first world institution, that had even a lending library with books in English and English employees like Mr. Wilson, in charge of the shoe section and who lived in the famous Pensão Brasileira on Rua Direita. Until the forties, anybody who was somebody wanted to be seen enjoying the five o’clock tea at the Mappin Stores.
Much of this is gone, and even though it is not possible to see the young women of the L’Auberge de Marianne on Rua Sete de Abril and sit on its sidewalk tables for a hot chocolate and a brioche, it is still a treat to have dinner at the Le Casserole or in Freddy, have a stout beer in Finnegan’s Pub or at the English Club on Rua Visconde de Ouro Preto and go to the Christmas bazaar of the Anglican Church on Rua Alziro Zarur, to buy second-hand books in English or take home the famed jams and the plum cake made by the English families who live in Alto da Boa Vista.
And there is always the consoling thought that we have also left our small mark in the history of these two peoples by sending Mr. Assis Chateubriand to the Court of St. James as ambassador and making General De Gaulle ride on a Volkswagen beetle in an official visit to Brazil.

Sources: 1. A History of Brazil, by E. Bradford Burns, Columbia University Press – New York. 2. Retalhos da Velha São Paulo, by Geraldo Sesso Jr., OESP - Maltese. 3. Long conversations with old inhabitants of São Paulo.

E Os Inglêses Saíram À Francesa


A influência dos franceses e ingleses no Brasil começou há muito tempo e está muito presente na nossa história.
Os franceses já foram a mais séria ameaça aos portugueses no Brasil. Depois de serem expulsos em 1567 do Rio de Janeiro, eles passaram a prestar atenção ao norte do país. Em 1612, uma expedição francesa comandada por Ravardière começou a colonizar o Maranhão. Foram expulsos em 1615, é verdade, mas um tal de Duguay-Trouin capturou e saqueou o Rio de Janeiro em 1711.
A França se dizia dona do Amapá até 1900. A França sempre foi o modelo da vida intelectual e cultural no Brasil. O francês era a segunda língua dos mais educados e discutia-se animadamente no Brasil as novelas de Flaubert, Balzac e Zola. As lojas elegantes das grandes capitais eram cheias de mercadorias francesas e as mulheres competiam para ver quem vestia a última moda ditada por Paris.
Depois deles a cultura inglesa começou a exercer forte fascínio sobre nós, embora os ingleses tivessem tido modos bem arrogantes: o Rei James I, por exemplo, generosamente deu terras do norte do Brasil a nobres de sua corte, mas, por sorte ou azar nosso, estes não as colonizaram. Poderíamos exagerar e dizer que o ouro brasileiro financiou o déficit comercial entre Portugal e Inglaterra, e que eles tiveram um papel preponderante nos movimentos políticos que resultaram na Lei Áurea.
Mas hoje em dia podemos, passeando pela cidade e pela memória dela, nos deleitar com as ricas heranças deixadas por estas duas culturas em nossa cidade.
No centro velho, perto do Largo do Café, ainda existem muitos telhados e a formosa cúpula, tudo feito de ardósia, típicos da arquitetura francesa. existem muitos telhados e a formosa cúpula, tudo feito de ardósia, típicos da arquitetura francesa. Temos o Viaduto Santa Efigênia, inaugurado em 1913, que passava por cima do antigo Mercado de Frutas e Hortaliças; o Parque Trianon na Av. Paulista – originalmente a Rua da Real Grandeza –, que era assim conhecido por causa do casarão que foi demolido para dar lugar ao MASP, e que as autoridades insistem inutilmente em chamar de Parque Tenente Siqueira Campos; os Campos Elísios e o Campo de Marte. Nomes e lugares inspirados na França.
Podemos nos lembrar do engenheiro ferroviário Stevaux, que emigrou para o Brasil e que deixou sua marca aqui em Sampa. Havia a conhecida Livraria Gazeaux, importadora de livros, que ficava em uma esquina da Praça da Sé. Existe ainda a Capela de Santa Luzia, chamada de Igrejinha Francesa, que tem o célebre altar da Nossa Senhora Sem Cabeça na Rua Tabatinguera. E havia ainda o Liceu Franco-Brasileiro, mais tarde Lycée Pasteur, na Vila Clementino, onde Monsieur Imbert ensinou por muitos anos.
Já os Ingleses nos deixaram a Estação da Luz e o prédio da Light & Power, que foi construído no lugar do incrível prédio do Teatro São José, na esquina da Rua Xavier de Toledo. O primeiro Viaduto do Chá, que foi construído de 1886 a 1892 e demolido em 1938, também era de inspiração inglesa. Tinha duas guaritas com guardas nos dois extremos, com relógios registradores que contavam as pessoas que passavam pela roda giratória e pagavam três vinténs de pedágio. Deixaram também o Gasômetro e as inúmeras Vilas Operárias, como a Vila Zelina, por exemplo. Isso para não falar da antiga São Paulo Railway. Entre São Paulo e Santos, no topo da serra, os engenheiros da ferrovia construíram a cidade de Paranapiacaba, que rende um passeio deslumbrante, especialmente em uma manhã de inverno, logo cedo, quando uma deliciosa neblina ou fog cobre a pequena cidade e esperamos esbarrar com Sherlock Holmes a qualquer momento. Temos até hoje a St. Paul School, conhecida antigamente como Escola Britânica de São Paulo. Não podemos nos esquecer da nossa primeira loja de departamentos, a Mappin Stores, instituição de primeiro mundo, que tinha até mesmo uma biblioteca com livros em inglês e empregados ingleses como Mr. Wilson, responsável pela seção de calçados, morador da famosa Pensão Brasileira na Rua Direita. Até a década de quarenta, todo mundo que era alguém queria ser visto saboreando o imperdível chá das cinco da Mappin Stores.
Muito disso já se foi, e embora não seja mais possível ver as moças do L’Auberge de Marianne na Rua Sete de Abril e sentar em suas mesinhas de calçada para um chocolate e um brioche, continua a ser uma ótima pedida jantar no Le Casserole ou no Freddy, tomar uma cerveja preta no Finnegan’s Pub ou no Clube Inglês da Rua Visconde de Ouro Preto e freqüentar o conhecido bazar de fim de ano da Igreja Anglicana na Rua Alziro Zarur, para comprar livros em inglês de segunda mão ou adquirir as famosas geléias em pote e o plum cake (bolo de ameixa) feitos pelas famílias inglesas que moram no Alto da Boa Vista.
E sempre resta o consolo de saber que deixamos também nossa pequena marca na história dos dois povos mandando Assis Chateubriand para a Corte de St. James como embaixador e fazendo o General De Gaulle andar de fusca em uma visita oficial ao Brasil.

Fontes:
1. A History of Brazil, de E. Bradford Burns, Columbia University Press – New York.
2. Retalhos da Velha São Paulo, de Geraldo Sesso Jr., OESP - Maltese.
3. Longas conversas com velhos habitantes de São Paulo.

The Flag


flag1 n. 1. A piece of cloth, usually rectangular, of distinctive color and design, used as a symbol, a standard, a signal, or an emblem. 2. National or other allegiance, as symbolized by a flag: ships of the same flag. 3. A ship carrying the flag of an admiral; a flagship. 4. A marking device, such as a gummed strip of paper, attached to an object to attract attention or ease identification; a tab. 5. The masthead of a newspaper.

Sunday afternoon. São Paulo frying at 38 degrees Celsius. My friend in Ibirapuera, stuck in the traffic jam of the Bienal, still with an article about a priest in his mind. In front of the State Legislature Building, the flag of São Paulo, at the top of the flagpole, swayed in the heat. He thought aloud: why thirteen stripes and not fourteen? I, who was sitting by his side, said: there is no answer to this question.
Feeling hot and curious, he looked at me and asked: what would you know about that?
I answered: my great grandfather was the creator of the flag of São Paulo.
The sudden braking of the car was abrupt that the priest of his next article, his briefcase and his next appointment were thrown out of his mind.
What’s the story, he asked, thinking of the fine he might get and asking himself what were those feathers he saw flying over his car.
Well, the story – which is the story of both the flag and of the author of the flag – I told my friend (ignoring the feathers that in fact belonged to a poor pigeon), is this:
The famous writer and grammarian Júlio Ribeiro idealized and published the flag of São Paulo (drawn by his cousin Amador Bueno do Amaral) for the first time in his newspaper “O Rebate”, on July 16, 1888, as a proposal for the Flag of the Republic that he wanted see promulgated in Brazil, and that was discarded in favour of of the positivist flag we now have. But it was adopted as the flag of the Province of São Paulo. Originally it had fifteen stripes and God knows why it was reduced to the present thirteen stripes made immortal by the poem of Guilherme de Almeida (considered by some, to this day, as its creator).
The second story, the one nobody knows, is this:
The full name of Júlio Ribeiro was Júlio César Ribeiro Vaugham. He was the son of an American from Virginia, whose grandfather had been a personal friend of George Washington, in whose homage he had named his son, George Washington Vaugham. This man, who was the father of Júlio Ribeiro, when he was eighteen, rounded some thoroughbred horses he had inherited and came to Brazil. When he was passing by the city of Sabará in Minas Gerais, he fell in love and got married. Many years later, with the son already grown, he left and disappeared in the world. People say he died in Africa. Júlio Ribeiro never forgave him for abandoning the family and this was the reason he stopped using his father’s name. But the resemblance of the flag of São Paulo and the American flag is far too visible for us to escape the temptation of trying our hand at psychohistory..
Ignoring the line of cars that had formed behind him, slowly, not to call attention, my friend parked his car. I thought of flagging him a taxi instead of risking his receiving a ticket but gave up when I thought there were too many flags in this story as it was already.

Sources: 1. Maria Júlia Pinheiro Lopes, granddaughter of Júlio Ribeiro. 2. Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Melhoramentos, 1998.

Bandeira


Bandeira: s. f. 1. Pedaço de pano, em geral retangular, com figuras e inscrições em cores regulamentares, e que é distintivo de uma nação, estado, corporação ou partido, ou para fazer sinais. 2. Facção, partido. 3. Idéia que serve de guia a uma cruzada, teoria, partido etc. 4. Caixilho envidraçado que encima portas ou janelas e serve para dar claridade aos aposentos. 5. Inflorescência da cana-de-açúcar e do milho. 6. Expedição armada (fins do séc. XVI aos começos do séc. XVIII), para explorar os sertões, descobrir minas ou capturar índios. 7. Em autos de praça, parte móvel do taxímetro, onde ocorre a bandeirada.

Domingo à tarde. São Paulo fritando a 38 graus à sombra. Meu amigou no Ibirapuera, travado no trânsito da Bienal, ainda com um artigo sobre um padre na cabeça. Em frente à Assembléia, a Bandeira Paulista, no topo do mastro, tremulava suada. Ele pensou em voz alta: por que treze listras e não quatorze? Eu, ao seu lado, disse: não tem resposta para essa pergunta.
Encalorado e curioso, olhou para mim e perguntou: o que você entende disso?
Respondi: meu bisavô é o criador da Bandeira Paulista.
A freada foi tão brusca que o padre da sua próxima coluna, sua maleta e seu próximo compromisso foram projetados para fora de sua cabeça.
Qual é a história, perguntou, pensando nos pontos que podia ganhar com uma multa e perguntando-se que penas eram aquelas que viu voar por cima do seu carro.
Bem, a história – que é uma história de duas bandeiras na verdade, a bandeira propriamente dita e a bandeira que o autor da bandeira deu – que contei a meu amigo (ignorando as penas do pobre pombo), é a seguinte:
O famoso escritor e gramático Júlio Ribeiro idealizou e publicou a Bandeira Paulista (desenhada por seu primo Amador Bueno do Amaral), pela primeira vez, em seu jornal “O Rebate”, no dia 16 de julho de 1888, como uma proposta para a Bandeira da República que queria ver instaurada no Brasil, e que foi preterida em favor da bandeira positivista que agora temos. No entanto, foi adotada como a Bandeira da Província de São Paulo. Originalmente tinha quinze listras e sabe-se lá por que cargas d’água, fixou-se nas atuais treze listras imortalizadas por Guilherme de Almeida (tido por alguns, até hoje, como seu criador).
A segunda bandeira, aquela que ninguém viu, é a seguinte:
O nome completo de Júlio Ribeiro era Júlio César Ribeiro Vaugham. Ele era filho de um americano da Virgínia, cujo avô, por sua vez, havia sido amigo pessoal de George Washington, em homenagem a quem havia dado o nome a seu filho de George Washington Vaugham. Esse, que era o pai de Júlio Ribeiro, aos dezoito anos, pegou alguns cavalos de raça que recebera de herança, e despencou para o Brasil. Quando passava pela cidade de Sabará em Minas Gerais, apaixonou-se e casou-se. Muitos anos depois, já com o filho crescido, partiu e sumiu neste mundo. Dizem que morreu na África. Júlio Ribeiro jamais o perdoou por ter abandonado a família e este foi o motivo de ter deixado de usar o nome do pai. Mas a semelhança entre o pavilhão paulista e a Bandeira Americana é por demais flagrante para escaparmos da tentação de fazer psicanálise histórica. Enfim, uma grande bandeira da parte desse nosso grande escritor.
Ignorando a fila de carros formada atrás dele, de mansinho, para não dar bandeira, estacionou por ali mesmo. Pensei em pagar um táxi a ele em vez de arriscar a que tomasse uma multa. Desisti quando pensei que com a bandeira 2 que iria ter que pagar, essa história ia acabar ficando com bandeiras demais.

Fontes:
1. Maria Júlia Pinheiro Lopes, neta de Júlio Ribeiro.
2. Michaelis, moderno dicionário da Língua Portuguesa, Melhoramentos, 1998.

An Old Lady


This old lady writes books of essays. They are not written to be published. In fact, she has forbidden anyone to even try to publish them. They are too personal for one thing, she says, and are just the memories of an old woman. But she recovers texts from her old journals, types new ones, saves and prints these reminiscences (having mastered computers at the age of eighty), and I am to be counted among the lucky few to be given copies.
The past is an ever increasing weight and I think this is her way of rendering her burden lighter.
Through those pages, fading images come to life, and the reader gets to know the gallery of her uncles and aunts, cousins, relatives, friends and acquaintances in colorful passages that took place during her long and fruitful life. She introduced the woman she was when she was young, naive and hopeful and she has shown her husband in a light no one else could ever have seen him. She captures snapshots of daily life with a keen eye for what is essentially human in people. She tells of how, in the course of almost half a century, the steps leading to the front door of her old house were worn out by the coming and going of many people and one gets to know small pieces of the lives of those who passed by that threshold.
She is a peculiar sort this old lady of mine. Through the many difficult and troubled times life has presented her with, she never lost the joy of living and has never ceased to thank the Lord for the many blessings she saw in everything that came her way. A sense of purpose permeates everything she does and writes. It is as if all that happens is meant to improve her spirit and she sees every little event in her path as being pregnant with meaning, as an opportunity to improve her knowledge of people and things. For she sees life as sacred.
Through her eyes one learns not only the stories of her life and of the lives of those who surrounded her and imagine we can feel the rain as it fell when her eyes were young and picture the faces of people as she describes them, but we also learn about the city and its streets, the much simpler ways of the past, the scarcity of the war years and the rapid changes the world underwent after that. We go with her for a walk in time and it is possible to see underneath the present, the pale presence of the layers of the past becoming vivid again.
She is an old lady full of stories to tell.
Some of her stories are about commonplace events and some overflow with sadness and human tragedy. Some are about happy instances and others are just plain funny. All are interesting. She has very personal turns of phrases and unusual points of view from which to show things. And, after reading her texts, one can’t help being grateful for the privilege of being alive in such a time and being able to share in it with her.
We talk on the phone two, maybe three times a week. In those long conversations she tells me many other stories that never make into her books.
This old lady is my mother, but this is another story.

Uma Velha Senhora


Essa velha senhora escreve livros de crônicas. Não são escritos para ser publicados. Na verdade, ela proibiu a todos que sequer pensassem em publicá-los. São muito pessoais, diz, e não passam de memórias de uma velha. Mas recupera os textos de seus velhos diários, escreve novos, salva e imprime estas reminiscências (tendo aprendido a lidar com computador aos oitenta anos), e eu posso ser considerado um dos poucos afortunados a ganhar cópias desses livros.
O passado é um peso crescente e acho que este é o seu modo de tornar este fardo menos pesado. Através de suas páginas, imagens esmaecidas voltam a viver, e o leitor é apresentado à galeria de seus tios e tias, primos e primas, parentes, amigos e conhecidos em passagens coloridas de sua longa e rica vida. Apresenta a mulher que era quando jovem, ingênua e cheia de esperanças e mostra seu marido com uma luz sob a qual ninguém mais poderia tê-lo visto. Ela captura instantâneos da vida diária com um olho que observa o que é essencialmente humano nas pessoas. Conta como, no curso de quase meio século, os degraus que levam à porta de entrada de sua velha casa foram gastos pelo ir e vir de tantas pessoas e fica-se sabendo de pequenos pedaços da vida daqueles que passaram por aqueles umbrais.
É um tipo peculiar essa velha senhora. Apesar dos muitos tempos difíceis e penosos que a vida lhe apresentou, nunca perdeu a alegria de viver e nunca deixou de agradecer ao Senhor pelas muitas bênçãos que viu em tudo que encontrou pelo caminho. Um sentido de direção permeia tudo que faz e escreve. É como se tudo que acontece tivesse o propósito de melhorar seu espírito e ela vê cada pequeno evento em sua jornada como sendo cheio de sentido, como uma oportunidade de aumentar seu conhecimento sobre as pessoas e as coisas.
Vê a vida como uma coisa sagrada.
Através de seus olhos fica-se sabendo não apenas as histórias de sua vida e da vida daqueles que a cercaram e é possível não somente imaginar como era a chuva caindo quando ainda era jovem e ver os rostos das pessoas quando as descreve, mas também ficamos sabendo como era a cidade e suas ruas, as coisas simples do passado, a escassez dos anos de guerra e as rápidas mudanças pelas quais o mundo passou depois disso. Vamos juntos em um passeio pelo tempo e é possível ver sob o presente, a pálida presença das camadas do passado tornando-se vívidas novamente.
É uma velha senhora cheia de histórias para contar.
Algumas de suas histórias são a respeito de eventos comuns e algumas transbordam de tristeza e de tragédia humana. Algumas são sobre momentos felizes e outras são simplesmente engraçadas. Todas são interessantes. Possui um modo todo pessoal de construir frases e pontos de vista inéditos a partir dos quais mostra as coisas. E, depois de ler seus textos, não dá para evitar o sentimento de gratidão pelo privilégio de estar vivo e poder partilhar de todas essas coisas.
Nos falamos ao telefone duas, talvez três vezes por semana. Nessas longas conversas me conta histórias que nunca se tornam crônicas de seus livros. Esta velha senhora é minha mãe. Mas isso é uma outra história...

Letter to Daniel on his 18


My son,

Today you are 18.
Your present is already chosen: formal object, the existence of which in the real world is palpable and visible. And it is very important insofar as it incorporates an independence of body and soul, a growing up, the coming of age: the right and the effective privilege of going and coming, without owing explanations to any one. Or, at least, this is what I felt in this moment, if my memory serves me well.
On the other hand, for you, it also carries the aspect of fortunate circumstance, of having been born in such a place and in such a time, the son of these parents, cared for and loved, observed and stimulated, favored like you were and is by tolerant and loving parents.
None of this should cloud the achievements that are fruit of your intelligence and of your humanity, of your solidarity and your legitimate concern with the world around you. These achievements belong to you. Nobody gave them to you.
But I want to tell you about an impalpable and intangible gift.
It is very hard to write a letter like this without being sentimental. This for an ordinary person, for me it is impossible, being corny to the marrow like I am, despite the pathetic efforts I make to seem rational and logic.
I have to tell you of the disturbing experience of being the son of one’s own son.
I’ll explain:
I believe this is the great surprise that life has in stock for the arrogant immortals we are when we decide to put a child in this world.
I imagined I would lead and teach that I’d be the benefactor who illustrates and explains the mysteries of the world to attentive and respectful ears.
No such luck!
Willful, that moon faced baby with the largest and most generous smile in the world, soon put me where I belonged from the get go, from a quarter to eleven of that Monday morning, March 23, eighteen years ago.
From then on, and little by little, in a daily basis in fact, life and living together with you taught me slowly to be humble, not to have certainties, to accept the other. You are the absolute other. A specific person with peculiarities and personal traits which I had and still have to learn every single day. This surrounded by relatives and varied persons who entertain themselves in explaining that my son is my spit image, that he took after me in this or that, or after my father or my grandfather. On the other hand, I was the father, consequently I was expected to know everything and to have all the answers: from the price of a Ferrari in Taiwan until the hourly rate of plumber in Mississippi; from who invented the X-ray or, all things considered, who was who in World War II. And I just standing there. Knowing and not being able to say that it is not quite like that. That the person who looks like me is, before anything else, the spitting image of himself, which is revealed everyday, every month, every year and in every birthday, for himself and for me.
And in this dance of the days and of the years all certainties were gone, and I, who had begun as the arrogant guide who knew it all and who would lead the son through the thousand paths and short cuts of this confusing and mysterious end of century, find myself marveled and surprised for being exactly what I was supposed to have been from the first minute on: only an apprentice.
And it is in this that I am the son of my son. Much more than teaching, I learned. I learned with my defects and vanities, I learned to be humble and I learned not to be right, I learned that listening is as important as being listened to, I learned that to respect is the only way to be respected and I also learned that patience is the art of peace. In sum, much of what I learned in life, I learned through being your father, I learned with you, my son.
Today, formally and legally, is the day of your coming of age. It is also the end of my guardianship. From today on you are an adult, responsible for your words and acts. You know that the importance of being righteous and of having character, of being compassionate with other human beings, of behaving ethically and of retributing the world for the plentifulness you received from it, does not lie in the opinion others may have of you, but in the opinion you have of yourself. And whenever you have to make a choice that may seem difficult to you, always ask yourself what is right: the answer will come to you crystal clear. Whatever the result, having chosen the path of righteousness, somehow it will have been the right choice.
There was a joke when I was a child that went like that:
Fritz, today you are 18. You have eaten many cakes and candies...
The idea was to reveal a secret that could only be disclosed in the day of the coming of age. In the joke the secret was that Santa Claus does not exist. The joke is false. Santa Claus does exist, because he represents the mystery of the world bestowing you with gifts. And what a mysterious gift of life is the incredible adventure of having a son and, as if in a mirror, being his son at the same time. Teaching how to learn and learning through teaching.
Happy birthday, my son, and may G-d, who is the Father of us all, bless you.

Dad.

Carta para o Daniel aos 18


Meu filho,

Hoje você completa 18 anos.
O seu presente já está escolhido: objeto formal, cuja existência no mundo real é palpável e visível. E é muito importante na medida que corporifica uma independência da alma e do corpo, um crescer, uma maioridade: o direito e o privilégio efetivo de ir e vir, sem prestar contas a quem quer que seja. Ou pelo menos é o que a gente sente neste momento, se bem me lembro.
Por outro lado, para você, carrega também o aspecto de circunstância afortunada, de haver nascido em tal lugar e em tal época, filho de quem é, cuidado e querido, observado e estimulado, favorecido como foi e é por pais tolerantes e amorosos.
Nada disso deve nublar as conquistas que são fruto da sua inteligência e do seu humanismo, da sua solidariedade e da sua legítima preocupação com o mundo que te cerca. Estas conquistas são suas. Ninguém as deu para você.
Mas quero falar do presente impalpável e intangível.
É muito difícil escrever uma carta dessas sem ser sentimental. Isso para uma pessoa comum. Para mim então, é impossível, sentimental e piegas até a medula que sou, apesar dos esforços patéticos que faço para parecer racional e lógico.
Preciso dizer a você da inquietante experiência de ser filho do próprio filho.
Explico:
Acredito que essa é a grande surpresa que a vida reserva aos imortais arrogantes que somos ao decidir colocar alguém neste mundo.
Imaginava que ia conduzir e ensinar, ser o benfeitor que ilustra e esclarece os mistérios do mundo para ouvidos atentos e respeitosos.
Qual o que!
Manhoso, aquele bebê com cara de lua e o sorriso mais largo e generoso do mundo, tratou de me colocar no meu devido lugar desde o primeiro instante. Desde as quinze para as onze da manhã daquela segunda-feira, 23 de março, há dezoito anos atrás.
A partir daí, e bem aos poucos, cotidianamente na verdade, a vida e a convivência com você foi me ensinando a ser humilde, a não ter certezas, a aceitar o outro. O “outro” no caso é você. Você é o outro absoluto. Pessoa específica com peculiaridades e pessoalidades que tive e tenho que aprender todos os dias. Isso em meio aos parentes e pessoas variadas que se entretém em explicar que meu filho é a minha cara, que puxou isso ou aquilo de mim ou do meu pai ou do meu avô. Por outro lado, sou o pai, portanto espera-se que saiba tudo e tenha todas as respostas: desde quanto custa uma Ferrari em Taiwan até a hora do encanador no Mississipi, quem inventou o Raio-X ou, afinal, quem era quem na Segunda Grande Guerra. E eu lá. Sabendo e não podendo dizer que não é bem assim. Que aquele que é a minha cara é, antes de tudo, a própria cara, que vai se revelando a cada dia, a cada mês, a cada ano e a cada aniversário, para si e para mim.
E nesta dança dos dias e dos anos lá se foram todas as certezas, e eu que comecei aquele arrogante guia que tudo sabia e que iria conduzir o filho pelos mil caminhos e atalhos deste confuso e misterioso fim de século, me descubro maravilhado e surpreendido do jeito que deveria ter sido desde o primeiro minuto: apenas um aprendiz.
E é aí que sou filho do meu filho. Muito mais do que ensinar, aprendi. Aprendi com as minhas deficiências e arrogâncias, aprendi a ser humilde e aprendi a não ter razão, aprendi que ouvir é tão importante quanto ser ouvido, aprendi que respeitar é a única forma de ser respeitado, aprendi também que a paciência é a arte da paz. Enfim, muito do que aprendi na vida, aprendi sendo seu pai, aprendi com você, meu filho.
Hoje, formal e juridicamente, é o dia da sua maioridade. É também o fim da minha tutela. A partir de hoje você é um adulto, responsável por suas palavras e atos. Você sabe que a importância de ser reto e ter caráter, de ter compaixão pelo seres humanos, de se comportar eticamente e de retribuir ao mundo pelo muito que ele te deu, não está na opinião que os outros tenham ou deixem de ter a seu respeito, e sim na opinião que você tem a seu próprio respeito. E sempre que tiver que tomar uma decisão ou fazer uma escolha que te pareça difícil, pergunte-se sempre qual o caminho que tem coração: a resposta te virá clara e límpida. Seja o que for que resulte, tendo escolhido o caminho do coração, de alguma forma você terá acertado.
Existia uma piada quando eu era criança que começava assim:
Fritz, hoje você faz 18 anos. Você já comeu muitos bolos e doces...
A idéia era a de contar um segredo que só poderia ser revelado na maioridade. Na piada o segredo é que Papai Noel não existe. A piada é falsa. Papai Noel existe sim, pois ele representa o mistério do mundo te dando presentes. E que presente misterioso da vida é a incrível aventura de ter um filho e como num espelho ser filho dele ao mesmo tempo. Ensinando a aprender e aprender ensinando.
Parabéns e que Deus, que é o pai de todos nós, te abençoe.

Papai.

Night Time


(...cantando a gente manda a tristeza embora...)*

You were beautiful
As you always are
At least under the stars
Of the vapor lamps

(... a tristeza é senhora, desde que o samba é samba...)

Hands in the hair
“ ... I married to myself...”
A sentence of yours like a breeze in my ears
Due to the draft that comes from the door and
Blows it in my ear

(... a solidão apavora...)

The dark vest
The white T-shirt
Beautiful always
Magnificent tonight
(Do whatever you want with me... she whispered the other night...)

(...a lágrima clara sobre a pele escura...)

* The verses between parenthesis are from the lyrics of the song "Desde que o samba é samba", by Caetano Veloso and Gilberto Gil.

Noite


(...cantando a gente manda a tristeza embora...)*

Você estava bela
Como sempre está
Ao menos sob as estrelas
De mercúrio

(... a tristeza é senhora, desde que o samba é samba...)

As mãos nos cabelos
“ ... casei comigo mesma...”
Frase sua como brisa até meus ouvidos
Por arte da correnteza que vem da porta e
Assopra em meu ouvido

(... a solidão apavora...)

O colete escuro
A camiseta branca
Bela sempre
Linda esta noite
(faça o quiser comigo... ela sussurrou uma noite dessas...)

(...a lágrima clara sobre a pele escura...)


* Os versos entre parênteses integram a letra da canção "Desde que o samba é samba", de Caetanos Veloso e Gilberto Gil

A Little Tear


The stage: the house is cleaned, the furniture disposed in a more convenient order, thought is given to plates and glasses, attention is directed to the complete satisfaction of the guests: only the best foods and drinks are to be served and the supply must be uninterrupted and plentiful. The music must be carefully chosen and someone must be in charge of it. At least until the hour prescribed for the party to end. For the party must end. The end is as a part of a party as it is a part of all things.
The play: it is always the same plot with little variations. The guests arrive, all dressed up and proper. Good manners and a certain restraint is to be observed in everyone. As the night proceeds, however, the social varnish is slowly removed by the alcohol and all sorts of small subplots take place. Nothing outside the absolutely usual, mind you, there will always be the happy ones and the sad ones, the loud ones and the quiet ones, the rejecting and the rejected, the ones that just observe, observing, the ones that are there just to be seen, just being seen and, of course, the ones in love and the ones out of love, for otherwise it wouldn’t be a party worthy of the name.
The end: the end is a pile of dirty dishes, half eaten food, the bottles empty and the ashtrays full, bits and pieces of stories still hanging in the smoky air and one or other guest walking around wondering where has it all gone.
To the host is allowed a little tear, but only after the doors are closed, the main lights are finally out and there are no witnesses.

Uma Pequena Lágrima


O palco: a casa é limpa, a mobília disposta em uma ordem mais conveniente, consideração é dada aos pratos e copos, a atenção é dirigida à completa satisfação dos convidados: somente as melhores comidas e bebidas devem ser servidas e o suprimento tem que ser ininterrupto e abundante. A música precisa ser cuidadosamente escolhida e alguém tem que estar encarregado dela. Pelo menos até a hora prescrita para a festa terminar. Pois a festa precisa terminar. O fim é tão parte de uma festa como é parte de todas as coisas.
A peça: é sempre a mesma trama com pequenas variações. Os convidados chegam, todos bem vestidos e adequados. Boas maneiras e uma certa reserva podem ser observadas em todos. A medida que a noite avança, no entanto, o verniz social é vagarosamente removido pelo álcool e todo tipo de sub-tramas se desenvolvem. Nada fora do absolutamente esperado, notem vocês, sempre haverá os felizes e os tristes, os barulhentos e os quietos, os que rejeitam e os que são rejeitados, os que apenas observam, observando, os que estão lá apenas para serem vistos, apenas sendo vistos e, é claro, os que estão apaixonados e os que estão sem amor, pois de outra forma não seria uma festa digna do nome.
O fim: o fim é uma pilha de pratos sujos, comidas deixadas pela metade, garrafas vazias e cinzeiros cheios, pedaços e cacos de histórias ainda pairando no ar enfumaçado e um ou outro convidado vagando e se perguntando onde tudo foi parar.
Ao anfitrião é permitida apenas uma pequena lágrima, mas somente quando as portas estiverem fechadas, as luzes principais apagadas e não houver nenhuma testemunha.

Broken Foot


The beginning was sheer happiness, not that it exists, but sheer happiness in comparison with the before and the after. Anyway, very good days, very good indeed. We both worked, but we had lunch at home. In fact, we didn’t work all that much. We had many hours of idleness, love, irresponsibility and contemplation. At times, we even slept after lunch. We had little past and the place was well lit, airy and with a beautiful view. We were new to each other and both to life. Everything was ahead of us and we went about it slowly, enjoying every minute. We loved as if there was no tomorrow.
But there was.
Paper, cotton, leather, flowers, wood, iron and copper...
After – the after, the after... – came the responsibilities, who washes, who dries, who makes the bed, who contributes with how much to the expenses. But even these were new and we had a plan. We would be the first, one of the first couples to share everything. It was at the same time an illusion, like so many things are illusions, but it had its effect: it generated freedom, and with it, solitude; it generated respect, and with it, silence, engendering persons.
Bronze, ceramic, tin, steel, silk, lace and marble...
The days in the middle, neither beginning nor end. Differences and agreements were built, adaptations, mutual concessions. Renunciation, commitments, the insidious delimitation of spaces.
A river begins small, increases, struggles with its banks so that after – the after, the after… – it can spread out, run more smoothly, more comfortable within its margins: thus time passes. There was calm and there was confusion, convergences and divergences, surrenders and silences. Sincerity as virtue, the truth as distress. And the river runs, without questions or answers, it just runs.
Crystal, porcelain and silver...
The end is just a moment, the instant when the water boils. But it had been there already, in the roots, in the genes, in the genesis. Like a presence disguised of daily life, a shadow accepted as an inevitable consequence of light. Unfathomable, final and unarguable. Something that comes apart, crumbles, tears and wears out.
And back to the before, to the beginning, in the form of after the after.
The same matter, dust and stars.

Pé Quebrado


O princípio foi pura felicidade, não que isso exista, mas pura felicidade em comparação com o antes e o depois. De qualquer forma, dias muito bons, mas muito bons mesmo. Trabalhávamos, mas almoçávamos em casa. Na verdade, não trabalhávamos tanto. Tínhamos muitas horas de ócio, amor, irresponsabilidade e contemplação. Às vezes, até dormíamos depois do almoço. Tínhamos pouco passado e o lugar era iluminado, arejado e com uma vista linda. Éramos novos um para o outro e ambos para a vida. Tudo estava por fazer e fomos devagar, curtindo, aproveitando. Amávamos como se não houvesse o dia de amanhã.
Mas havia.
Papel, algodão, couro, flores, madeira, ferro e cobre...
Depois – o depois, o depois... – vieram as responsabilidades, quem lava, quem enxuga, quem arruma, quem contribui com quanto para as despesas. Mas mesmo essas eram novas e tínhamos um plano. Seriamos os primeiros, um dos primeiros a dividir tudo. E era ao mesmo tempo ilusão, como tantas são as ilusões, mas fez seu efeito: gerou liberdade, e com ela a solidão; gerou respeito, e com ele o silêncio, engendrando-nos pessoas.
Bronze, cerâmica, latão, aço, seda, renda e mármore...
Os dias do meio, nem começo e nem fim. Construíram-se diferenças e acordos, adaptações, concessões mútuas. Renúncias, compromissos, a insidiosa delimitação dos espaços.
Um rio principia pequeno, aumenta, briga com as margens para depois –depois, depois... – se espalhar, correr mais tranqüilo, mais confortável entre seus limites: assim passa o tempo. Houve calma e houve confusão, encontros e desencontros, entregas e silêncios. A sinceridade como virtude, a verdade como aflição. E o rio corre, sem perguntas e sem respostas, apenas corre.
Cristal, porcelana e prata...
O desenlace é somente um momento, o instante em que a água ferve. Mas já estava lá, na raiz, nos genes, na gênese. É como uma presença disfarçada de cotidiano, uma sombra aceita como conseqüência inevitável da luz. Incompreensível, final e indiscutível. Algo que se desfaz, esboroa, esgarça e pui.
E de volta ao antes, ao princípio, em forma de depois do depois.
Uma mesma matéria, poeira e estrelas.

Portrait


An aristocrat from the tropics,
mild of manner and educated, albeit
not formally; who should be kept away
from alcohol not to flood unprepared ears
with harsh observations usually best left unsaid;
excelling in the language and culture of the
forefathers, at least four generations removed,
he walks and lives: a fake pearl amidst real swine.

Retrato


Um aristocrata dos trópicos,
de boas maneiras e educado,

embora não de modo formal;
que deveria ficar longe do álcool;
que não deveria encher ouvidos
desprevenidos com falas
severas, melhor se não ditas;
primando na língua e na cultura

de seus antepassados, ao menos
quatro gerações já idas,
ele caminha e ultrapassa os anos:

pérola falsa entre legítimos suínos.

(Tradução para o português de Marcelo Tápia)

What Puzzles Me


What puzzles me is the truth.

The truth takes friends away
And offends the acquaintances.

It hurts deep, pains the heart,
Mists the eyes, blocks the throat.

The truth comes in a slant,
does not clarify nor illuminates.
The truth assassinates.

The truth are round eyes
gazing at the void.

O Que Me Intriga


O que me intriga é a verdade.

A verdade leva embora os amigos
e ofende os conhecidos.

Fere fundo, aperta o coração,
mareja os olhos, trava a garganta.

A verdade vem de quina,
não esclarece e, tampouco, ilumina.
A verdade assassina.

A verdade são olhos redondos,
fitando o vazio.

The Thousand Watt Smile


I always liked engaging people in conversation and I think this love of chatting must be in the blood. People are always interesting to me, even those who may not be so for others. But, sometimes, however, I meet truly fascinting people.
It’s the case of Clarão.
When I go visiting my mother, I always park the car on a quiet street close to her place. There is an Italian restaurant there and the security man who works there came one day towards me when I had just parked the car. He was a strong black man with an easy demeanor and a thousand watt smile. That was the first of the many chats we had. In these chats, little by little, I learned his story:

Clarimundo Aparecido da Silva, “Clarão” “The Flash”, was Born in Minas Gerais on April 8, 1957 and grew up in Uberaba. His father was a Sergeant in the army. His mother was a washerwoman and died while harvesting cotton.

Joe Louis Barrow, “O Bombardeiro Marrom”, nasceu no Alabama em 13 de maio de 1914 e cresceu em Detroit. Seu pai era apanhador de algodão e sua mãe era lavadeira.

Clarão began fighting as a middleweight in the Tournament of A Gazeta Esportiva.

Joe Louis começou sua carreira como meio pesado 1933 quando chegou às finais do Torneio Golden Gloves.

Clarão became light heavyweight and was Brazilian Champion in 1978 and Latin-American Champion 1979.

Joe Louis se tornou peso-pesado e foi Campeão do Mundo em 1937.

In 1980, Clarão was discarded in the choice of the fighters who would go to the Moscow Olympic Games and became a professional.

Antes disso Joe Louis havia sofrido uma derrota para Max Schemeling, a única mancha em sua carreira. Ele havia se tornado profissional em 1934.

Clarão fought for his titles 51 times, he won 26 by knockout, 22 by points and was defeated three times.

Joe Louis defendeu seu título 25 vezes e ganhou 20 dessas vitórias por nocaute. Depois de abandonar o ringue, tentou voltar duas vezes. Junto com sua derrota para Schmeling, ele perdeu três vezes.

Clarão was 1st of the world and fought for the WBC World Title against Dennis Andries.

Joe Louis manteve o título de Campeão dos Pesos Pesados por mais tempo do que qualquer outro homem.

Clarão was known for his killer right that lighted up the ring.

Joe Louis combinava um movimento para frente com um ataque relâmpago com os dois punhos. Mais tarde em sua vida, ele ganhou a vida como recepcionista e relações públicas de um cassino em Las Vegas.

Clarão, after his boxing career, works as a security man in an Italian restaurant in Jardins in São Paulo.

Joe Louis morreu de um ataque cardíaco em 12 de abril de 1981 em Las Vegas.

Clarão illuminates us until today with his thousand watt smile.

O Sorriso de Mil Watts


Sempre fui de puxar conversa com as pessoas e acho que deve estar no sangue esse gostar de dois dedos de prosa. As pessoas me são sempre interessantes, mesmo aquelas que para algum outro talvez não o sejam. Mas, às vezes, no entanto, conheço pessoas realmente fascinantes.

É o caso do Clarão.
Quando vou visitar minha mãe, sempre estaciono o carro em uma ruazinha tranqüila perto da casa dela. Nesta rua existe um restaurante e o segurança que trabalha ali veio em minha direção um dia quando estacionei o carro. Era um negro forte de ar tranqüilo e com um sorriso de mil watts. Foi a primeira de muitas prosas que tivemos. Nessas prosas, de pouco em pouco, aprendi sua história:

Clarimundo Aparecido da Silva, o “Clarão”, nasceu em Minas Gerais em 8 de abril de 1957 e cresceu em Uberaba. Seu pai era Sargento do Tiro de Guerra. Sua mãe era lavadeira e morreu durante uma ‘panha’ de algodão.

Joe Louis Barrow, “The Brown Bomber”, was born in Alabama on May 13, 1914 and grew up in Detroit. His father worked as a cotton picker and his mother was a washerwoman.

Clarão estreou como peso médio nas lutas do Torneio A Gazeta Esportiva.

Joe Louis began his career as a light heavyweight in 1933 when he went up to the finals of the Golden Gloves Tournament.

Clarão virou meio-pesado e foi Campeão Brasileiro em 1978 e Campeão Latino-Americano em 1979.

Joe Louis became a heavyweight and was Champion of the World in 1937.

Em 1980 Clarão foi preterido na escolha dos lutadores de box que iriam para a Olimpíada de Moscou e tornou-se profissional.

Before that Joe Louis had suffered a defeat to Max Schemeling, the only dark spot in his career. He had become a professional in 1934.

Clarão lutou por seus títulos 51 vezes, ganhou 26 por nocaute, 22 por pontos e sofreu três derrotas.

Joe Louis defended his title 25 times and won 20 of these wins by knockout. After his retirement, he tried a comeback twice. Together with his loss against Schmeling, he was defeated three times.

Clarão chegou a 1º do mundo e disputou o Título Mundial do CMB contra Dennis Andries.

Joe Louis held the title of Heavyweight Champion for more time than any other man.

Clarão era conhecido pela sua direita arrasadora que iluminava o ringue.

Joe Louis put together a movement forward with a lightning attack with the two fists. Later in his life, he made a living as a greeter and a public relations man of a casino in Las Vegas.

Clarão, depois de sua carreira no box, trabalha como segurança de um restaurante italiano nos Jardins em São Paulo.

Joe Louis died of a heart attack on April 12, 1981 in Las Vegas.

Clarão nos ilumina até hoje com seu sorriso de mil watts.

The Outcasts


We see them every day. When they knock on our door to ask for food, at traffic lights, asking for coins, sweets, cigarettes, anything. Or washing the windshields of cars even when people don’t want them to or have nothing to give in return for their service. We also see them wandering the streets, nowhere to go; we speed by them, blurred huddles in carton shelters, inside the tunnels or under the viaducts; we cross with them and we hear them screaming inanities or else, we go around them in the morning, when they are lying on the sidewalks in fetal position, sleeping in the rain. They may be alone or in a group, be men or women, young or old. And, many times, with children around, always many children.
They are the outcasts.
The reaction of people is one of discomfort or disgust. Outcasts are scary. It doesn’t occur to anybody that they are the ones who are scared of us. Very scared. Life has only taught them to be beaten, to lose, to be nobodies, to live without self-esteem. It is certain that they see the discomfort in the eyes and in the gestures of people. It is clear that they feel the contempt and they surely feel the disgust. But it is possible to see in them, sometimes, and if we pay attention, a physical likeness to many people we know personally or to people who are in the media. One can be the spit image of Jim Morrison, another one, with a little effort of imagination, remind one of a known singer, a famous painter, a prominent executive or a socialite.
Suppose we were taken out of the places where we are usual, of where we make sense, wouldn’t we become strangers too? And if we found ourselves, all of a sudden, in the outskirts of a foreign city, for instance, with a different uniform, surrounded by the sounds of another language, dialect or slang being spoken around us; in different circumstances of life where we aren’t known, where our secret signs aren’t reflected by the walls, by looks of recognition? And if we didn’t display on our bodies the thousand ephemeral details that give us self-confidence and identity, history and respect? Wouldn’t we be seen also with suspicion, disgust and fear? And wouldn’t we be frightened for being outcasts? Why is it then, that when we look at them we don’t ask ourselves: who did this? I suspect it is because we know the answer.

Os Excluídos


Nós os vemos todos os dias. Quando batem na porta para pedir comida, nos faróis, pedindo moedas, balas, cigarros, qualquer coisa. Ou então limpando pára-brisas de carros até quando as pessoas não querem ou não tem nada para dar em retorno do serviço. Os vemos também vagando pelas ruas, sem destino; passamos por eles amontoados em abrigos de papelão dentro dos túneis e embaixo dos viadutos; cruzamos com eles e os ouvimos gritando incoerências ou então, desviamos deles de manhã, quando estão largados na calçada, dormindo na chuva em posição fetal. Eles podem estar sozinhos ou em grupos, serem homens ou mulheres, velhos ou jovens. E, muitas vezes, com crianças por perto, sempre muitas crianças.
São os excluídos.
A reação das pessoas é de desagrado ou nojo. Os excluídos metem medo. Não ocorre a ninguém que são eles que sentem medo de nós. Muito medo. A vida só lhes ensinou a apanhar, a perder, a não ser ninguém, a viver sem amor próprio. É certo que vêem o desagrado nos olhos e nos gestos das pessoas. É claro que sentem o desprezo e é certeza que sentem o nojo.
Mas é possível ver neles, às vezes, e se prestarmos atenção, semelhanças físicas com muitas pessoas que conhecemos pessoalmente ou que estão na mídia. Um pode ser a cara do Jim Morrison, outro, com um trato da imaginação, lembrar um cantor conhecido, um pintor famoso, um executivo de destaque ou uma socialite.
E se fossemos retirados dos lugares onde somos usuais, onde fazemos sentido, não nos tornaríamos também estranhos? E se nos encontrássemos, de repente, na periferia de uma cidade estranha, por exemplo, com outro uniforme, outra língua, outro dialeto ou gíria sendo falados ao nosso redor, em outras circunstâncias de vida onde não fossemos conhecidos, onde nossos sinais secretos não fossem refletidos pelos muros, pelos olhares de reconhecimento? E se não trouxéssemos pendurados no corpo os mil detalhes efêmeros que nos dão segurança e identidade, história e respeito? Não seríamos nós também, vistos com desconfiança, nojo e medo? E não estaríamos apavorados, por sermos nós os excluídos? Por que, quando olhamos para eles então, não nos perguntamos: quem fez isso? Eu desconfio que é porque nós saberíamos a resposta.

Nomads


I met with several through the years in the most diverse circumstances. João Au-Au, for instance, is a type who belongs in my childhood and adolescence. He was a tall and thin fellow who lived in a corner in the neighborhood where I was born. He had a pushcart, of the type used in construction sites, and a retinue of street dogs who followed him everywhere. Some of them tied to the pushcart, others loose. It was a strange sight to see him walking the streets with that band of dogs around him. Another time, when I was eighteen, on the night before I went to the US for the first time, I went out for a walk. At a street corner, a beggar started talking to me and I told him I was going to travel and where. He began speaking in English, very good, by the way, and that was not all, he spoke in French and in Italian too. Strange advice in several different languages, everything at the same time.
At the end of an afternoon, in the park by the Charles River in Boston, many years later, ducks in the water, sail boats leisurely in the distance, people jogging and squirrels hiding behind the trees, a man stopped in front of me, pointed to the ducks and said solemnly: America is dead. They don’t know it yet, but America is dead. And went his way. Maybe it really is.
Saffron Gagné, a woman escaping her own life and waving at me from the other side of a street in Chicago. We had traveled together for two months on the roads between Denver and that street, and until today I don’t know exactly who she was.
A tribe of nomads. Solvitur ambulando. Things are solved by walking. Or, as Rimbaud said in a letter from Africa: what am I doing here?

Nômades


Ao longo dos anos cruzei com vários nas mais diferentes circunstâncias. O João Au-Au, por exemplo, era um tipo que faz parte da minha infância e adolescência. Era um sujeito magro e alto e morava na esquina da Argentina com a Brasil. Tinha um carrinho de mão, desses que se usam em obra e tinha um séquito de cachorros que andavam com ele. Alguns presos ao carrinho, outros soltos. Era uma visão estranha vê-lo andando pelas ruas com aquele bando de cachorros ao redor. Uma outra vez, aos dezoito, na noite antes de ir para os EUA pela primeira vez, saí para dar uma volta a pé. Na Rocha Azevedo com a Lorena um mendigo puxou conversa e eu contei que ia viajar e para onde. Ele começou a falar em inglês, muito bom por sinal, e não foi só, falou em francês e em italiano também. Conselhos estranhos em várias línguas, tudo ao mesmo tempo. Um fim de tarde em um parque de Boston, patos na lagoa, veleiros preguiçosos, pessoas fazendo o jogging e esquilos se escondendo atrás das árvores, um sujeito parou na minha frente, apontou para os patos e disse solene: A América está morta. Eles não sabem ainda, mas a América está morta. E seguiu seu caminho. Vai ver está mesmo. A Saffron Gagné, uma mulher fugindo da própria vida e acenando para mim de uma esquina qualquer em Chicago. Viajamos dois meses pelas estradas entre Denver e a tal esquina, e até hoje não sei direito quem ela é. Uma tribo de nômades. Solvitur ambulando. As coisas se resolvem andando, ou como disse Rimbaud em uma carta da África: O que estou fazendo aqui?

24 Hours


They are all sitting in a semi-circle like old Indians or old warriors.
They are all silent, but not just any silence, it is a dense silence like you find only among veteran old warriors. They learned how to wait.
Little by little, each one at a time, they begin to speak. Each one of them with his particular sound, begins to tell a little of his battle stories, the history of the scar that ached that day.
And on they go: grave and ridiculous, crying and laughing, with anger and with fear, sharing experiences, throwing in the common circle the booties of war.
Nobody knows, but they are the wise men of the tribe gathered in secret assembly.
Anonymous, like warriors are and should be, they fight the battles of the tribe and for its sake, defeat their demons.
They are the Praetorian Guard, they are the Three Hundred from Sparta and, just like them, they fight in the shadow.
Night falls outside, and oblivious of the war around them, the common citizens of the tribe sigh and, for twenty-four more hours, they can sleep in peace.

24 Horas


Estão todos sentados em semicírculo como velhos índios ou velhos guerreiros.
Todos guardam silêncio, mas não é qualquer silêncio, é um silêncio denso como só se encontra entre velhos guerreiros veteranos. Gente que aprendeu a esperar sua hora.
Aos poucos, cada um por sua vez, começam a falar. Cada um com seu som particular, toma a palavra e conta um pouco das suas histórias de batalha, a história da cicatriz que doeu naquele dia.
E assim vão: graves e ridículos, aos prantos e as gargalhadas, com raiva e com medo, partilhando caminhos, jogando no círculo comum os despojos de guerra.
Ninguém sabe, mas eles são os sábios da tribo em assembléia secreta .
Anônimos, como são e devem ser os guerreiros, eles lutam as lutas da tribo e por ela, derrotam seus demônios.
Eles são a Guarda Pretoriana, são Os Trezentos de Esparta, e como eles, lutam a sombra.
Lá fora anoitece, e alheios a guerra em sua volta, os cidadãos comuns da tribo suspiram, e por mais vinte e quatro horas, podem dormir em paz.

The Counter


The word came to us from British Celtic word kombrogos, and before that, from the Celtic word Kom- a collective prefix. The word, originally, meant fellow countryman. We gave more pedestrian meanings to the word. It is immediately associated to bars. The bar counter is the most popular confession booth or psychoanalyst divan there is. It is also a living room couch, meeting table, corner of life, captive chair, observation post, podium, playing board, buffet and, when the hours are small, the streets dawn and the birds begin to cough outside, a pillow.
Many good ideas, many plans, great friendships and beautiful fights began and ended having a counter as a witness. If we could register what it is said on bar counters maybe we could produce a first class sociological study about ourselves.
But the most important is the life that passes by them, by our counters: true loves and loves of occasion, small lies and great truths, the silences and the noise, dreams and, sometimes, hard awakenings.
It is a place of exchange, of give and take, of barter, mutual and simultaneous transference of affection, stories and life.

O Balcão


A palavra balcão veio para nós do italiano balcone e, para o italiano, do alemão balko. A palavra, originalmente, quer dizer plataforma ou cadafalso. Aqui demos sentidos mais amenos à palavra. Associa-se imediatamente a Romeu e Julieta, a Rapunzel ou, mais prosaicamente, aos bares. O balcão de bar é o mais popular confessionário ou divã de psicanalista que existe. É também sofá de sala de visitas, mesa de reunião, esquina da vida, cadeira cativa, posto de observação, pódio, tabuleiro, buffet e, quando as horas já são pequenas, as ruas amanhecem e os passarinhos começam a tossir lá fora, travesseiro.
Muita idéia boa, muitos planos, grandes amizades e belas brigas começaram e terminaram tendo um balcão como testemunha. Se pudéssemos registrar o que se fala nos balcões dos bares talvez produzíssemos um estudo sociológico de primeira sobre nós mesmos.
Mas o mais importante é a vida que passa por ali, pelos nossos balcões: os amores verdadeiros e os amores de ocasião, as pequenas mentiras e as grandes verdades, os silêncios e as algazarras, os sonhos e, as vezes, o duro despertar.
É um lugar de troca, de toma lá dá cá, de permuta, câmbio, transferência mútua e simultânea de afetos, histórias, olhares - e vida.

Old Sailor


No one goes away without leaving some impression, and the closest ones inherit part of his liberated soul and become richer in their humanity.
In each friend we lose, we lose a part of ourselves: the best part.
Every person that departs takes with him his first spring, his first kiss and his first struggle. When he is gone, several worlds go with him.
Life doesn’t stop being fun when someone departs, in the same way that it doesn’t stop being serious when people laugh.
Every day is a small life, each awakening and getting up a small birth, each morning a small youth and each rest and falling asleep a small death.
It is not pleasant to be abandoned. And, nonetheless, we are abandoned one way or another all through life. Once the perplexity is over, the only thing left to do is to reinvent the world.
Fernando Mercadante, the Old Sailor, is no longer amongst us, smiling with experience from the corner of the counter, as if to reaffirm to us that everything was all right, that the evening was going to be pleasant and that life is worth living.
The bar became sad without him. For a moment it became just like any other bar; but, despite that, as he himself said, stubbornly happy.
We will miss him very much.
Lehaim.

Velho Marinheiro


Ninguém parte sem deixar alguma impressão, e os mais próximos herdam parte da sua alma liberada e se tornam mais ricos em sua humanidade.
Em cada amigo que perdemos, perdemos uma parte de nós: a melhor parte.
Toda pessoa que parte leva junto sua primeira primavera, seu primeiro beijo e sua primeira luta. Quando se vai, vários mundos vão com ela.
A vida não deixa de ser divertida quando alguém se vai, da mesma forma que não deixa de ser séria quando as pessoas riem.
Cada dia é uma pequena vida, cada despertar e levantar um pequeno nascimento, cada manhã uma pequena juventude e cada descanso e adormecer uma pequena morte.
Não é agradável ser abandonado. E no entanto somos abandonados de uma forma ou de outra durante toda a vida. Passada a perplexidade, resta reinventar o mundo.
Fernando Mercadante, o Velho Marinheiro, não está mais entre nós, sorrindo experiente lá da ponta do balcão do bar, como se para nos reafirmar que estava tudo bem, que a noite ia ser boa e que a vida vale a pena.
O bar ficou triste sem ele. Por um momento ficou parecido com um bar qualquer; mas, apesar disso, como ele mesmo ensinava, teimosamente feliz.
Vamos sentir muita falta dele.
Lehaim.

Old Ladies and Racing Horses


The Jockey Club on a sunny Sunday afternoon. One breaths the open air, it’s possible to feel elegant, to be alone amidst the crowd, have an excellent espresso and maybe, with a little luck, score a couple of bucks. A good idea. Better than watching television, slouched on a couch.
In the background, the expressway. The cars passing far away seem even peaceful, inoffensive. An airplane glides lazily towards the airport.
Horse racing types: old men of a certain age already, with expressions of experts in horses and dressed as experts losers at horse races. Some very old ladies, with hairdos and sporting their Sunday dresses. A weekend father here and there running on the lawn and playing with the children in front of the stands. In general younger and fatter than the other habitués. Some bright-eyed couples with first time written all over them. They all carry the huge pages with the description of the races, printed in red, folded in four and well held. The race track has a beautiful name, Cidade Jardim – Garden City.
The horses trot precise before the public. Each one a champion. The jockeys, very elegant, look all like winners.
A group of enthusiastic men from Italian descent:
- Ma Domenico plays well.
- Yeah... he know how to bét !
- Ma now what’s the good one, Domenico?
- I will a bet in the a seven... it’s gonna be the a seven, te dico io...
To my right there were three ladies. One thinner and elegant, looking a well lived fifty something and two looking like someone else’s aunts, both over sixty-five, short, fat, wearing glasses and dressed in grey. All three of them with binoculars, all three with the official horse racing publication, all three persistent at betting a little:
- Sirizinha is running today...
- Don’t tell me?!? She’s great.
- And English Lord is in the next race...
- A friend gave me a long skirt of the exact same color of your pants, but I don’t like long skirts....
- You can always wear it to a party...
- Do I go to parties? This is the only place I come to...
- This dapple-grey is good, this one I know, he is the son of Quality Control...
- Easy Go will win...
- I will go with Capitão do Mato...
The three left in a rush to make their bets. The announcer says ‘one minute’.
I went with Easy Go, after them.
Right on the money. I invested the eighty cents profit in an espresso.

Velhinhas e Cavalinhos


Jockey Clube em tarde ensolarada de domingo. Respira-se um pouco, pode-se sentir elegante, ficar só em meio a companhia, tomar um bom café de máquina e quem sabe, com sorte, até ganhar uns trocados. Bom programa. Melhor que ver televisão, largado no sofá.
Ao fundo, as Marginais. Os carros passando ao longe até parecem pacíficos, inofensivos. Um avião passa descendo preguiçosamente em direção a Congonhas.
Tipos turfísticos: Senhores já de uma certa idade, cara de profundos conhecedores de cavalos e roupas de profundos perdedores de corridas de cavalo. Umas senhoras bem antigas, de birote e vestidas com roupas de domingo. Um ou outro pai de fim de semana correndo pela grama e brincando com os filhos em frente às arquibancadas. Em geral mais moços e mais gordos que os outros freqüentadores. Alguns casais com cara de primeira vez e olhos brilhantes. Todos com as enormes páginas de páreos, impressas em tinta vermelha, dobradas em quatro e bem seguras na mão. Belo nome, Cidade Jardim.
Os cavalos trotam precisos na frente do público. Cada um, um campeão. Os jóqueis, elegantes, parecem todos vencedores.
Um grupo de animados senhores de origem italiana:
- Ma joga bem o Domenico.
- É... sabe abostá...
- Ma agora vai dá o que, Domenico?
- Vou abostá no sete... vai dá sete, te dico io...
À direita três senhoras. Uma mais magra e elegante, cinqüenta e poucos bem vividos e duas típicas tias dos outros, mais de sessenta e cinco, baixinhas, gordinhas, de óculos e vestidas de cinza. Todas as três de binóculos, todas três com livrinhos oficiais de turfe, todas três assíduas no hábito de fazer uma fézinha:
- Hoje corre a Sirizinha...
- Não diga?!? Ela é ótima.
- E o Lorde Inglês está no próximo páreo...
- Ganhei uma saia longa da cor dessa sua calça, mas eu não gosto de saia longa....
- Usa em alguma festa...
- E eu lá vou em festa? Eu só venho aqui...
- Esse tordilho é bom, esse eu conheço, é filho do Quality Control...
- Vai dar Easy Go...
- Eu vou com o azarão, Capitão do Mato...
Saem as três apressadas para apostar. O locutor fez o anúncio de ‘um minuto’.
Fui de Easy Go, na cola delas.
Barbada. Investi os oitenta centavos de lucro em um café de máquina.

Here Comes Santa Claus...


Josias had arranged to work as Santa Claus as a way to make some extra money. He was already counting with the little he was going to make and with the leftovers of the dinner of the fat cats who had employed him to take back to the slum where he lived. He arranged the costume and got into his old car. But, you know how it is with poor people, they always run into bad luck. As soon as he entered the expressway the car broke down. Shucks! Eleven-thirty PM and there he was.
Meanwhile...
The family was gathered in the beautiful house in the suburbs. The oldest son, a director in a multinational, had arrived a while before from Chile with his wife and their two small children. The sister, a really thin university professor and her husband, a silent intellectual, plus the two daughters of the second marriage of the patriarch and, of course, the man himself, very happy and proud with his third wife, presiding the reunion. The full dinner served over the white linen table cloth, the correct wines, the champagne, everything perfect.
Midnight and no Santa Claus. The children with long eyes put in the bright Christmas tree surrounded with beautiful packages. Twelve fifteen and still nothing. Twelve thirty. The multinational son argues that perhaps they should open the presents without waiting for the good old man because the children were already getting sleepy. The very thin sister refuses the suggestion peremptorily. They will wait for Santa Claus and that’s that. The argument increases in volume and mutual recriminations put in their appearance, eventually, the quiet intellectual slaps the multinational son in the face on account of four letter word (not love) directed to his wife and a fight ensues. In a blink of an eye they are rolling on the floor hitting each other, going under the table and dragging everything down with them: turkey, glasses, champagne, presents, nuts, everything to the floor on top of them. The patriarch, very red in the face, breathing in spasms, his hand over the heart, trying to go up to the second floor helped by the scared third wife, the daughters shouting and saying that it was all his fault, children screaming and crying. Everything very family like.
Josias, dirty with grease at a quarter to one, with the white beard sticking in the sweated neck, the red sack full of newspapers to make volume, gets off the motorcycle that finally had given him a ride and rings the bell at the door of the house.
He hasn’t quite understood what really happened till this day. The door flew open and two disheveled gentlemen, their shirts out of their trousers, came out calling him names and cursing loudly. He had no doubts, he turned round and ran down the street as fast as he could. The people in the few cars in the street at that hour must still be trying to figure out the scene they saw: two breathless and potbellied gentlemen running after Santa Claus, screaming and shouting.
Oh well... Merry Christmas.

Lá Vem Papai Noel...


Josias tinha arrumado um bico de Papai Noel. Já estava contando com os trocados e um resto da ceia dos bacanas para levar de volta para o barraco. Ajeitou a fantasia e entrou na Brasília. Mas pobre, sabe como é, sempre dá azar. Foi só entrar na marginal e o carro encrencar. Que lata! Onze e meia e ele ali.
Enquanto isso...
A família reunida na linda casa dos jardins. O mais velho, diretor de multinacional, chegado a pouco do Chile com a esposa e os filhos pequenos. A magérrima irmã, professora universitária, seu marido, intelectual e caladão, os dois filhos do segundo casamento do patriarca e, é claro, o próprio, todo pimpão com a terceira esposa, presidindo a reunião. A farta ceia disposta sobre a alva toalha de linho, os vinhos corretos, o champagne, enfim, tudo perfeito.
Meia-noite e nada do Papai Noel. As crianças com os olhos compridos postos na reluzente árvore de natal cercada de presentes. Meia-noite e quinze e nada. Meia-noite e meia. O filho multinacional argumenta que talvez devessem abrir os presentes sem esperar o bom velhinho pois as crianças já estavam com sono. A magérrima irmã nega peremptória. Iam esperar o Papai Noel e acabou-se. Começou um bate-boca que foi aumentando de volume até que o calado intelectual meteu uma bifa nos bofes do multinacional e o pau degenerou. Num piscar de olhos estavam no chão aos sopapos, rolando para baixo da mesa e arrastando peru, óculos, champagne, presentes, nozes, o diabo. O pai vermelho de falta de ar, a mão no coração, tentando subir para o segundo andar, a filha aos berros dizendo que a culpa sempre tinha sido dele, as crianças gritando e chorando. Tudo muito família.
Josias, meio sujo de graxa, com a barba branca grudando no pescoço suado, o saco vermelho cheio de jornais amassados para fazer volume, desceu da moto que finalmente lhe tinha dado uma carona, e tocou a campainha da casa.
Até hoje ele não entendeu direito o que aconteceu. A porta abriu e dois senhores desgrenhados, camisas pra fora das calças já saíram aos xingos em sua direção. Ele não teve dúvidas, disparou em desabalada carreira rua abaixo. Os passageiros dos poucos carros trafegando aquela hora devem ter entendido menos ainda: dois ofegantes e barrigudos senhores correndo atrás de um Papai Noel aos gritos.
É... Noite feliz.

The Street Songs


The other day I was having lunch in my small terrace that looks down the dead end street where I live, when I heard the cornet of a candy vendor who was passing towards the steps at the end of the street.
Instead of the annoyance these loud interruptions provoke on most people, it came to me the memory of the large number of different types of calls and cries of street vendors that existed when I was a boy.
The first one I remember is the bottle buyer. I could hear from far away his call that stretched the last two syllables and only after a while I saw the man pulling the cart who bought used bottles and old newspapers. They paid very little, but paid nonetheless.
There was also the man who bought used clothes and cried “buy clothes”. It was a more syncopated cry, with a more percussive rhythm. He passed on foot and used a lot of clothes one over the other, besides the old suitcase strapped to his back.
The knives and scissors sharpener played a flute, like the one of the god Pan and his knife sharpener was a contraption with a bicycle wheel that served both ride and, upside down, turned the grindstone. It seemed to have been handcrafted.
The Japanese man from the cleaners passed on Mondays. He always asked with a heavy accent: are there clothes to wash?
There were three types of ice-cream vendors: the one of the horse cart who was called Poi and rang bells. The one of the first factory in Brazil who pushed a cart and shouted the name of the company that sounded as “very tasty”. And there were the homemade ones, made in some backyard, who just cried “Ice-cream!”
In the neighborhood where I grew up there were buildings going up. Early in the morning, at seven, at lunch, at eleven, in the beginning of the afternoon, at noon and at the five o’clock work stoppage call, a sound was made with an iron triangle and a metal rod. They whirled the rod inside the triangle producing a sharp metallic noise in an ever increasing speed.
And there was, of course, the hurdy gurdy. It was a sort of music box with a cage on top and a drawer in the middle full of small cards. In the cage traveled a parakeet that, for a very small sum, would pick one of the cards with his beak. The card brought the fortune and the future of the illustrious client.
These noises have practically disappeared, replaced by old cars with speakers on the roof and pre-recorded tapes.
It is amazing that only at times, we realize how much these small pieces of daily life that are gone take away a little of ourselves with them.

As Músicas da Rua


Estava outro dia almoçando em meu pequeno terraço que se debruça sobre a rua sem saída onde moro, quando ouvi a corneta de um vendedor de doces que passava em direção às escadarias no fim da rua.
Ao invés da irritação que essas interrupções sonoras provocam na maioria das pessoas, me veio a lembrança do enorme número de diferentes tipos de gritos e chamadas de vendedores ambulantes que havia quando eu era menino.
O primeiro que lembro é do garrafeiro. Ouvia desde longe o grito que esticava as duas últimas sílabas para depois vislumbrar o homem puxando a carroça que comprava garrafas usadas e jornais velhos. Pagavam muito pouco, mas pagavam.
Havia também o que comprava roupas usadas e gritava ‘compra roupa’. Era um grito mais sincopado, com um ritmo mais percussivo. Andava a pé e usava um monte de roupas umas sobre as outras, além da mala cheia a tiracolo.
O afiador de facas e tesouras tocava uma flauta, como a do deus Pan e sua afiadora de facas era uma engenhoca com uma roda de bicicleta que tanto servia para rodar com ele empurrado como, de cabeça para baixo, girava a pedra de amolar. Parecia feita artesanalmente.
O japonês da tinturaria passava às segundas-feiras. Perguntava sempre com sotaque carregado: tem roupa pra lavar?
Sorveteiro tinha de três tipos: o da carrocinha puxada à cavalo que se chamava Poi e tocava sinos. O da primeira fábrica no Brasil que empurrava uma carrocinha e gritava o nome da empresa que soava como ‘muito gostoso’. E havia os artesanais, de fundo de quintal, que apenas gritavam: sorvete!
No bairro onde cresci, durante toda a minha infância havia prédios sendo construídos. A hora da entrada, as sete da manhã, do almoço, as onze, a entrada da tarde, ao meio-dia e o aviso da saída, as cinco, era produzido com um bastão e um triângulo de ferro. Giravam o bastão dentro do triangulo fazendo um barulho metálico de velocidade crescente.
E havia também, é claro, o realejo. Era uma caixa de música com uma gaiola em cima e uma gaveta no meio cheia de minúsculos cartões. Na gaiola viajava um periquito que, por uma módica quantia, tirava um desses cartõezinhos com o bico. No cartão vinha a sorte e o futuro da ilustre pagante.
Esses barulhos praticamente sumiram, substituídos que foram por carros velhos com alto-falantes nas capotas e fitas pré-gravadas.
É incrível como só às vezes nos damos conta como os pedacinhos pequenos da vida diária que se vão, levam embora um pouco da gente também.

Saturday Morning


I don’t know if this is true of everybody, but I am always curious to know how people’s house is inside, the division of spaces, the decoration, the objects people collect through life. Sometimes I’d love to be able to remove the roofs of the houses and peek inside, as if they were toy houses.
This is why one of the best things to do in São Paulo is to visit one of the houses of families that are moving out.
When my mother was moving from a huge house to a small apartment, she had get rid of a lot of things and someone recommended Cristina to me. She is an outspoken and hard working woman who organizes everything, helps put prices on things and arrange them in the most appealing way. She invites people over to see if they can find something interesting to buy.
Early on Saturday mornings, there she is, together with her small army of helpers, waiting for the guests.
It’s like going into someone else’s home and be surprised with what is hidden behind the facade; to unveil the corners and the passages, to find from the simplest to the most improbable of things, marvel at architectonic solutions and very personal space arrangements. It’s like sneaking into people’s lives. I imagine their daily life, the family dinners, the lazy afternoons, the routine of each family member. Imaginary secrets.
Everything, or almost everything, is for sale. It is true that many things in display look embarrassed for being exposed in this way in the eyes of the public. When I began living alone again, I practically set up a house with these findings. From the couch to the fridge to kitchenware; objects, clothes, lamps, everything can be found. And every weekend brings a new surprise: a new neighborhood, a different house and a thousand other possibilities.
The adventure has only one catch: it’s addictive. It is frequent to bump into the same people every week, walking around among local people who are there for the first time. A knowing look is exchanged, a good-morning or a how are you is said, and on you go. Some begin the visit by the kitchen, others by the living-room. There are the hunters as well, of course, of paintings, chandeliers, furniture, crystals or art objects. There are probably experts who, with a mere look, can spot things that go unnoticed for us mere mortals. I have even found things that are now precious to me, but the best of all, really, is the treasure hunt. A real treat.

Sábado de Manhã


Não sei se acontece com todo mundo, mas eu sempre tive a curiosidade de saber como é a casa das pessoas por dentro, a divisão dos espaços, a decoração, os objetos que as pessoas juntaram durante a vida. Gostaria, às vezes, de poder tirar o telhado das casas e espiar lá dentro, como se fossem de brinquedo.
Por isso um dos melhores programas que conheço é ir a uma dessas casas de famílias que se mudam.
Quando minha mãe estava mudando de uma casa enorme para um apartamento pequeno, era necessário se desfazer de muita coisa e alguém me indicou a Cristina. É uma mulher despachada e trabalhadora que organiza tudo, ajuda a colocar preços, dispor as coisas da maneira mais atraente. Convida as pessoas para fazer uma visita e ver se acham alguma coisa interessante para comprar.
Aos sábados, logo pela manhã, lá está ela e seu pequeno exército de auxiliares a espera dos convidados.
É como entrar na casa de alguém e surpreender-se com o que se esconde por trás da fachada; desvendar os cantos e as passagens, encontrar das coisas mais simples as mais improváveis, admirar soluções arquitetônicas e arranjos muito pessoais de espaços. É como entrar na vida das pessoas. Imagino a vida diária delas, os jantares em família, as tardes preguiçosas, a rotina de cada um. Segredos imaginados.
Tudo, ou quase tudo, está à venda. É verdade que muitas das coisas expostas parecem encabuladas de estarem expostas assim à visitação pública. Quando voltei a morar sozinho, praticamente montei uma casa com esses achados. Desde sofá e mesa até geladeira e pequenas coisas de cozinha; objetos, roupas, abajures, tudo se acha. E cada fim de semana é uma nova surpresa: um novo bairro, uma casa diferente e mil outras possibilidades.
O programa só tem um defeito: Vicia. É comum encontrar as mesmas pessoas todas as semanas, transitando entre as que são do bairro e estão indo pela primeira vez. Troca-se um olhar cúmplice, um bom-dia ou um como vai e segue-se em frente. Uns começam a visita pela cozinha, outros pela sala. E há também os caçadores, de quadros, de lustres, de mobília, de cristais e de objetos de arte. Deve haver os especialistas que com um olhar descobrem o que passa desapercebido por nós mortais. Até já encontrei coisas que hoje me são preciosas, mas o bom mesmo é a farra da caça ao tesouro. Grande pedida.

Fifteen Seconds


I had been in Berkeley, California, for around three months back in 1973. My learning English, which had begun by listening to Elvis Presley in Brazil and not understanding a word, was now taking a curious turn. As soon as I had arrived to study in a language school in East Oakland, I had been invited by the other Brazilians in the place for a small party in one of their rooms. News from the homeland, this and that, being introduced to people they knew in the school, and even meeting an interesting young woman called Debra. She was a freckled red-haired, with Portuguese ascendants and, on the next day, I discovered she was my conversation teacher. Later on, we even dated for a while. But that is beside the point. Next day, at breakfast, I explained to my fellow Brazilians, who always sat at the same table, that I didn’t want to speak Portuguese, that I found the Brazilian flag ugly, that I didn’t particularly like samba and that I wanted to learn English, so they should address me only in that language. Oh, well… obviously they became my enemies. The fact is that, from then on, I really begun learning English. Not in the school, where I stayed for barely two months, and even during these, with more classes missed than attended to. I moved to Berkeley and begun learning with the new friends I had made. Kim, an Englishman; Terry, a gipsy who walked up and down with a handkerchief around his neck and with Debra. As I spoke more than I listened – you still do, my ‘friends’ will certainly say – I learned to speak before I learned to understand.
One evening, I went to a bar called The Cheshire Cat which was on the other side of the campus from where I lived. It was a cozy little place, with tables on the sidewalk and with regulars from the university. In this particular evening, I was at a table by myself and begun paying attention at the table next to mine. They were speaking very fast in a strange language.
Fifteen seconds. That was how long it took for all the pieces to fall in their place in my mind and reach my ears. It was Portuguese. But for those fifteen seconds I heard the sound of my own language. I had the privilege of listening to Portuguese as it is listened to by foreigners, without getting the meaning, just enjoying its music. It is a melodic, beautiful, syncopated and strange language and I never forgot that sound.

Quinze Segundos


Fazia cerca de uns três meses que estava em Berkeley, na Califórnia, em 1973. Meu aprendizado de Inglês, que tinha começado ouvindo o Elvis Presley e não entendendo nada ainda no Brasil, agora estava tendo um curso curioso. Assim que chegara, para estudar em uma escola de Inglês para estrangeiros em East Oakland, tinha sido convidado pelos outros brasileiros locais para uma festinha num dos quartos. Notícias da terrinha e tal, fui apresentado a pessoas da escola, e até conheci uma moça interessante, chamada Debra. Ela era uma ruiva sardenta descendente de Portugueses e no dia seguinte descobri que era minha professora de conversação. Depois até namoramos um tempo. Mas isso não vem ao caso. No dia seguinte, no café da manhã expliquei aos meus compatriotas, que sentavam todos na mesma mesa, que não queria falar Português, que não achava a bandeira do Brasil bonita, que não gostava de samba e que queria aprender Inglês e que, portanto, só se dirigissem a mim em Inglês. Ô língua... Evidentemente viraram todos meus inimigos. O fato é que, a partir daí, comecei realmente a aprender Inglês. Não na escola, onde fiquei apenas dois meses e, mesmo esses, com mais aulas matadas do que assistidas. Mudei para Berkeley e comecei a aprender com os novos amigos que tinha feito. Kim, um Inglês; Terry, um cigano que andava para baixo e para cima com uma bandana no pescoço e com a Debra. Como falava mais do que escutava – é assim até hoje, dirão meus ‘amigos’ – aprendi a falar antes de entender.
Uma noite, fui a um barzinho chamado The Cheshire Cat, que ficava do outro lado do Campus de onde eu morava. Era um lugarzinho simpático, com mesinhas na calçada e freqüentado pelo pessoal da universidade. Nesta noite, estava em uma mesa sozinho e comecei a prestar atenção na mesa ao lado. Estavam falando muito rápido em uma língua diferente. Quinze segundos. Foi esse o tempo que levou para as peças se encaixarem na minha cabeça e avisarem meus ouvidos. Era Português. Mas durante aqueles quinze segundos ouvi o som da minha própria língua. Tive o privilégio de ouvir Português como a ouvem os estrangeiros, sem entender o significado, curtindo apenas sua música. É uma língua melódica, linda, sincopada e estranha.
Nunca mais esqueci aquele som.

Good Mornings


Today, for the first time, Lisbon, Lisabona, Land of Ulysses. The legend goes that it was founded by Ulysses himself when returning from the Trojan Wars. That may be. What is known is that it is one of the most ancient cities in the world, capital of the first country to be formed in Europe, Portugal.
For me, the time travel, the return to the home I had never seen, considering that all in Brazil carry a Portuguese side in our memories.
It is in the roots of our family names, sculpted in the architecture of the houses, in the design and pattern of the sidewalks, in the building of the phrases and the walls, in the Iberian mode of expression, with its peculiar words, in its very particular use of the verbs, in the choice, old to my ears, of expressions and, specially, in the gentle way the way of addressing each other.
Between the place where I was lodged and the bistro where I had my ‘small lunch’, I used six time the words ‘good morning’. It may seem little in these times of unchecked violence, but I believe everything begins there: in the minimal daily and formal respect they show each other.
There is, I realize, in the much talked about sad soul of the Portuguese, much of what is heard in Brazil in the sentences, nowadays spoken to the rhythm of the tropical swing and the African inheritance. The fact is that somewhere in our souls we remain Portuguese, who came to Brazil, not after the ethics of work, but after the ethics of daring, in which there was no necessary correspondence between what is beautiful and what is good, I which the art (of life, so to speak) cannot be seen as politically correct, because it is, most of the time, in fact, politically incorrect, for it is the expression of what goes on in the hearts of people and not of what their consciousness would tell them or the mandate of what is known as civilized behavior.
I strolled by the back streets, entered some antique stores and in so many other bookshops – I bought an edition of the Divine Comedy -, had my reading glasses fixed, had a couple of espressos, took two or three snapshots and considered the day well ended.
The next day began early, I woke up – I had been sleeping in the couch with the TV on – and saw, through the wide shutters, the first rays of the sun. I was happy with the prospect of seeing the day rise in the Sun Coast. I got up, prepared a mug of coffee, brushed my teeth and combed my hair, lit up my first cigarette of the day – always the best one – and pushed the bottom that raised electrically the shutters. He magnificent sunrise I had glimpsed through the shutters was just a garden lamp.

Each Ulysses with his own delusions.

Bons Dias


Hoje, pela primeira vez, Lisboa, Lisabona, Terra de Ulysses. Diz a lenda que fundada pelo próprio na volta da Guerra de Tróia. Pode ser. O que se sabe é que é uma das cidades mais antigas do mundo, capital daquele que foi o primeiro país a se formar na Europa, Portugal.
Para mim, a viagem no tempo, a volta para casa que nunca conheci, já que todos do Brasil temos na memória um lado Português.
São as raízes impressas nos sobrenomes, registradas na arquitetura das casas, no desenho e conformação dos passeios públicos, na construção das frases e dos muros, no modo lusitano de expressão, com suas palavras peculiares, no seu particular uso dos verbos, na escolha, antiga aos meus ouvidos, de expressões e, sobretudo, no modo cordial de se dirigirem uns aos outros.
Entre o lugar onde me hospedei e o lugarzinho onde desfrutava o saboroso ‘pequeno almoço’, usava seis vezes as palavras ‘bom dia’. Pode parecer pouco nestes tempos de desmedida violência, mas creio que tudo começa aí: no respeito mínimo, formal e cotidiano que uns demonstram pelos outros.
Existe, percebo, na decantada alma triste dos portugueses, muito do que se ouve no Brasil em frases hoje embaladas pela ginga tropical e a herança africana. O fato é que em algum lugar da alma somos ainda portugueses, que para o Brasil viemos atrás, não da ética do trabalho, mas sim da ética da ousadia, em que não havia correspondência necessária entre o belo e o bem, em que a arte (da vida, por assim dizer) não pode ser vista como politicamente correta, pois é, no mais das vezes, na verdade, politicamente incorreta, expressão que é do que se vai à alma das pessoas e não no que lhes ditaria a consciência e o mandato do assim chamado comportamento civilizado.
Passei pelas ruas detrás, entrei em alguns antiquários e em outras tantas livrarias – comprei uma edição da Divina Comédia -, consertei meus óculos de leitura, tomei um par de expressos, tirei um par de fotos e dei os tramites por findos.
O dia seguinte começou cedo, acordei – tenho dormido no sofá com a TV ligada – e vi, através das frestas das amplas venezianas, os primeiros raios de sol. Fiquei animado com a perspectiva de ver o dia nascer na Costa do Sol. Levantei-me, preparei um café, escovei os dentes e penteei o cabelo, acendi meu primeiro cigarro do dia – sempre o mais gostoso –, e acionei o botão que levanta eletricamente as venezianas. O magnífico nascer do sol que tinha vislumbrado pelas frestas era apenas uma lâmpada do jardim.

Cada Ulysses com suas ilusões.